Essa declaração pode parecer forte demais depois de escrita e verbalizada. Ainda mais quando a interlocutora é uma pernambucana nascida no Recife, vinda de uma linhagem de nordestinos pra lá de cabras machos e mulheres fortes emigrados do sertão paraibano. Em falando de família, nossa geração tem mania de culpar os pais por quase tudo que não deu certo nas nossas vidas. É essa coisa de psicologia de almanaque aliada à falta de vergonha na cara para assumir as próprias taras. Claro que a criação é importante, nossos pais e, principalmente nossas mães, foram heroínas da resistência tendo que trabalhar fora, dar conta da casa, das crianças, dos bichos de estimação (inclui-se aí muitos maridos).
Bem, por falar de mãe... A minha bem que tentou me colocar no “bom caminho” dos 99% dos recifenses que amam Carnaval. Achei outro dia uma foto na qual eu figurava na tenra idade de dois anos e quatro meses trajando uma indefectível roupinha de havaiana e, claro, com o acessório exigido, o colar de flores de plástico. Garotinha muito branca e magrinha, de bochechas rosadas, cabelo liso e preto, parecendo um bibelô de porcelana que se perdeu de uma casa de bonecas vitoriana. Bem que minha mãe tentou. O detalhe da foto é que estou mesmo com cara de choro. Acho que já imaginando que aquela não era muito a minha praia em termos de diversão. Desde cedo percebi que meu ideal de socialização não iria incluir multidões, calor, aperto e música ruim falada em língua de bebê (aê, aê, aê, ô, ô, ô...).
Depois da foto da havaiana, fiquei curiosa para conferir mais algumas tentativas da minha mãe de me incluir no clima desta festa que dura oficialmente quatro dias, mas que, com o jeitinho brasileiro, pode se estender por intermináveis meses de prés; pós, durantes, ressacas, despedidas, prévias, e sei lá mais que nomes se dá para essas festas antes/depois do Carnaval. Aí fui em busca das memórias fotográficas da família e eis que me deparo com mais uma “boneca” já perto dos seus cinco anos, vestindo a famosa fantasia de bruxa. Ah! Essa eu gostei! Chapéu alto, roupas pretas e até a vassourinha. Pelo menos combina mais com a minha cara emburrada de quem comeu e não gostou. Ou melhor, cara de quem não está nem um pouco a fim de comer desse prato chamado Carnaval. Acho que estou enjoada com esse barulho. Tem confete no meu sapato. Que droga.
Essa foto de bruxinha foi de um dos primeiros aniversários do meu irmão. Ele nasceu em plena época de folia, dia 16 de fevereiro. Então, nada mais justo que a festinha dele ser uma prévia carnavalesca para as crianças da rua em que morávamos. Minha mãe heroína (nunca a vi fantasiada, mas acho que ficaria ótima de Mulher Maravilha) fez festas incríveis com verbas ridículas. Ela seria a alegria de qualquer departamento de marketing atual. Meu irmão vestido de marinheiro. Uma gracinha gorducha que não parava quieto um instante, perturbando incansável os demais pirralhos da festa, inclusive a bruxa que perdeu a vassoura e foi correndo chorar nas saias da mãe. Será que este trauma ajudou no meu ódio ao Carnaval? Não... Acho que nasci assim mesmo. Com essa “deficiência” moral de acordo com os pernambucanos mais arraigados.
Depois da infância, nunca mais me fantasiei decentemente. Pelo menos não com as super produções da minha mãe. Ela bem que tentou. Eu juro. E essa culpa de não gostar de Carnaval é minha mesmo. Sou dada a ser diferente dos outros 99% da humanidade recifense. Vejo o Carnaval com olhos de turista. Mas daqueles que não entram na folia, apenas a observam, achando graça em algumas irreverências esporádicas. Já me peguei admirando o Maracatu Rural em suas cores e música contagiantes. Até ensaiei uns passinhos como se fosse uma gringa atrevida. E sempre que vou a lugares assim, tipicamente pernambucanos, me perguntam de onde eu sou. Ah! Daqui mesmo do Recife. E ficam me olhando com cara desconfiada como seu estivesse mentindo. Que discriminação com quem não conhece, não gosta, mas que até admira quem se mete nessas algazarras de Carnaval. Tenho milhares de amigos e amigas que veneram a festa.
Fantasias a parte, prefiro mesmo meu pijamão nos quatro dias de paz que eu encaro a cada ano. Quatro dias em que o mais próximo de Carnaval que eu chego é quando ligo a TV e vejo as notícias das folias em todo o país. No máximo levo a minha filhota para uma festinha ou prévia infantil. Ela devidamente fantasiada, eu fingindo uma animação que só engana mesmo criança pequena. E olhe lá! Bem, eu estou seguindo os passos da minha mãe. Eu estou apresentando o Carnaval à pequena. Quem sabe ela encara isso como uma diversão saudável. Coisa que eu não consegui incorporar na minha vida. E pelo que já vi, acho que não vou precisar me esforçar muito. A menina parece que fica elétrica quando ouve música, pulando que nem pipoca na panela. Adora se fantasiar e não tem medo de barulho. Mas a mamãe aqui, apesar de me sentir um peixe fora d’água e mais deslocada que pinguim em praia nordestina, ainda se mantém firme na declaração inicial. Eu odeio Carnaval. Sem exclamação. É apenas a pacífica constatação de um fato. Mas nada contra quem gosta de barulho, calor, música ruim, calo no pé, sede e muito aperto. Aperto eu prefiro de outro jeito. Bom, mas essa já é uma outra história.
P.S.: este artigo fez parte de uma antologia de contos e crônicas, intitulado Sonhos de Carnaval, organizados por Karla Melo e Graça Melo e editado pela Cepe - Companhia Editora de Pernambuco. Ideal para uma Segunda-feira Gorda, não acham?
Nenhum comentário:
Postar um comentário