sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Florbela, a mais bela.

Hoje, para vocês, nesta sexta-feira de sol e de reflexões, um dos meus poemas preferidos, da minha preferida, Florbela Espanca. Bem a minha cara...

EuEu sou a que no mundo anda perdida, 
Eu sou a que na vida não tem norte, 
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte 
Sou a crucificada ... a dolorida ... 

Sombra de névoa ténue e esvaecida, 
E que o destino amargo, triste e forte, 
Impele brutalmente para a morte! 
Alma de luto sempre incompreendida! ... 

Sou aquela que passa e ninguém vê ... 
Sou a que chamam triste sem o ser ... 
Sou a que chora sem saber porquê ... 

Sou talvez a visão que Alguém sonhou, 
Alguém que veio ao mundo pra me ver 
E que nunca na vida me encontrou!
Florbela Espanca, "Livro de Mágoas" 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Vingança

Era um amanhecer como outro qualquer, parecia mais madrugada, mais escuro, mais tenso do que deveria. Olhos na penumbra me chamaram a atenção caminhando de mansinho em cima do telhado vizinho. Eu e meu marido estávamos no alpendre da casa, observando o quintal e esse movimento estranho. Lobos. Um casal de lobos. Olhos amarelos e pelos cinzentos. Sem cerimônia, sob nossos olhos, resolveram atacar as galinhas no quintal. Houve agitação e tentamos assustá-los. Mas sem resultado. Eles atacaram. Meu marido logo estava armado de arco e flecha ameaçando os animais. Mas que animais? Eram ciganos. Transformaram-se em ciganos? E o homem tinha agora também um arco. E também uma flecha. Longos e mortíferos. Os homens se enfrentaram. Um querendo roubar. O outro tentando proteger a casa, a família.

Eu fiquei onde estava, atônita com a situação que se desenrolava tão rápida, tão perigosa. Depois de gritos e de ameaças, o lobo/cigano dispara sua arma. O olho. A cabeça. Do meu marido. Do amor. Não mais estavam ali. De rosto virado ao chão, seu corpo jazia inerte. Meu grito foi imediato, longo e inútil. Inútil como a arma do meu marido, caída ao seu lado. Tão morto e perdido para mim, para nossa filha. Ela estava na casa. Segura. Sei pai. E agora sem mãe, pois eu corri para vingar meu marido, para matar aqueles desgraçados que haviam acabado com as nossas vidas. Sem chance de alcançá-los... Corri. E na rua, ainda na porta de casa, portões escancarados. Vi sua fuga. Impotente e sentindo todo o medo e toda a tristeza do mundo em mim.

Mas meu coração estava vendido, entregue ao ódio já neste instante. E a louca de preto que apareceu quase que voando em sua carruagem dos infernos passou diante de mim naquela hora. Acho que era o espírito da maldade, do ódio. E ela me conquistou. Levou-me em seus braços e me deu o poder de ser ruim e de fazer o mal. Eu já não sabia quem eu era, apenas o desejo de vingança cega me levava adiante. O sentimento de ódio doída de tão forte no meu peito. Assim me afastei para sempre da minha casa, do meu amor, da minha filha. Agora tudo eram lembranças confusas e meu pensamento estava voltado para achar os ciganos, os lobos. Matar e exterminá-los do mundo. Essa era a minha missão e a minha motivação.

Nada me faria mudar de ideia. Estava endurecida nesse ciclo vicioso de alcançar e machucar. Como eu havia sido machucada, aviltada e derrotada. Assim eu iria proceder, para sempre. E logo eu usava as vestes negras da loucura, rezando para encontrar os ciganos, pedindo forças aos mais baixos poderes de um submundo que se abria para mim e que me acolhia como uma filha renegada. Eu pedi flores, rosas. Vermelhas. Como sangue. Para me enfeitar na minha jornada. 

E rosas estavam nas minhas mãos quando eu aprisionei e levei na coleira aquela criança cigana. Ou seria um monstro? A mim, parecia um monstro disforme que merecia punição. Merecia sofrer como meu marido, morrer como ele. Sem rosto, sem adeus. E eu me vi. Também um monstro de maldade que se deixou levar pelo ódio, pela vingança, pela dor. Quero lembrar mais, viver mais, mas a memória agora me deixou sem um fim para minha jornada. Deixou-me sem perdão e sem sanidade alguma.

Taciana Antunes

21/01/2014