Estou em uma semana nostálgica...
Nada melhor que trazer um pedacinho do inédito Canções de Ninar para vocês meus fiéis seguidores e leitores. Sempre adoro reler meus textos. Espero que aproveitem também.
Tragédia
silenciosa
(reescrito a partir do texto Ato de Devorar, 23.03.93)
A cena fica retida nos olhos sem pálpebras. A cabeça da criança
está inerte na areia. É a última testemunha do espetáculo de sangue e morte. Na
retina sem lágrimas o mundo resume-se a um segundo de horror.
As bestas mataram a fome,
enquanto o sol do deserto queima os cabelos descoloridos da criança. Ela não
mais sente o corpo pequeno e leve. E juntamente com o corpo, foram-se as
lembranças.
Desconhece o próprio nome. O olho podia ver ainda, mas não se
move em sua órbita: sangue e mais sangue. O altar dos sacrifícios provocados
pelas bestas é o deserto, areia e sol. As garras enterraram-se em seu corpo e
ela nada pôde fazer. Esquece gritos e lágrimas. Apenas dor. Os caninos rasgaram
a carne, arrancada de ossos tão brancos.
A cabeça esquecida pelas bestas é sobra do banquete. Uma boca
sem sorriso, apenas areia e saliva, ainda úmida. Pode senti-la. Sangue e silêncio,
depois que os pedaços dos pais foram devorados.
As imagens não estão nítidas como antes, e a cabeça guarda o
vulto do abutre que belisca seu olho sem pálpebras.
Janeiro, 1999
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