Era um amanhecer como outro qualquer, parecia mais
madrugada, mais escuro, mais tenso do que deveria. Olhos na penumbra me
chamaram a atenção caminhando de mansinho em cima do telhado vizinho. Eu e meu
marido estávamos no alpendre da casa, observando o quintal e esse movimento
estranho. Lobos. Um casal de lobos. Olhos amarelos e pelos cinzentos. Sem
cerimônia, sob nossos olhos, resolveram atacar as galinhas no quintal. Houve
agitação e tentamos assustá-los. Mas sem resultado. Eles atacaram. Meu marido
logo estava armado de arco e flecha ameaçando os animais. Mas que animais? Eram
ciganos. Transformaram-se em ciganos? E o homem tinha agora também um arco. E também
uma flecha. Longos e mortíferos. Os homens se enfrentaram. Um querendo roubar.
O outro tentando proteger a casa, a família.
Eu fiquei onde estava, atônita com a situação que se
desenrolava tão rápida, tão perigosa. Depois de gritos e de ameaças, o
lobo/cigano dispara sua arma. O olho. A cabeça. Do meu marido. Do amor. Não
mais estavam ali. De rosto virado ao chão, seu corpo jazia inerte. Meu grito
foi imediato, longo e inútil. Inútil como a arma do meu marido, caída ao seu
lado. Tão morto e perdido para mim, para nossa filha. Ela estava na casa.
Segura. Sei pai. E agora sem mãe, pois eu corri para vingar meu marido, para
matar aqueles desgraçados que haviam acabado com as nossas vidas. Sem chance de
alcançá-los... Corri. E na rua, ainda na porta de casa, portões escancarados. Vi
sua fuga. Impotente e sentindo todo o medo e toda a tristeza do mundo em mim.
Mas meu coração estava vendido, entregue ao ódio já neste
instante. E a louca de preto que apareceu quase que voando em sua carruagem dos
infernos passou diante de mim naquela hora. Acho que era o espírito da maldade,
do ódio. E ela me conquistou. Levou-me em seus braços e me deu o poder de ser
ruim e de fazer o mal. Eu já não sabia quem eu era, apenas o desejo de vingança
cega me levava adiante. O sentimento de ódio doída de tão forte no meu peito. Assim
me afastei para sempre da minha casa, do meu amor, da minha filha. Agora tudo
eram lembranças confusas e meu pensamento estava voltado para achar os ciganos,
os lobos. Matar e exterminá-los do mundo. Essa era a minha missão e a minha
motivação.
Nada me faria mudar de ideia. Estava endurecida nesse ciclo
vicioso de alcançar e machucar. Como eu havia sido machucada, aviltada e derrotada.
Assim eu iria proceder, para sempre. E logo eu usava as vestes negras da
loucura, rezando para encontrar os ciganos, pedindo forças aos mais baixos
poderes de um submundo que se abria para mim e que me acolhia como uma filha
renegada. Eu pedi flores, rosas. Vermelhas. Como sangue. Para me enfeitar na
minha jornada.
E rosas estavam nas minhas mãos quando eu aprisionei e levei na
coleira aquela criança cigana. Ou seria um monstro? A mim, parecia um monstro
disforme que merecia punição. Merecia sofrer como meu marido, morrer como ele.
Sem rosto, sem adeus. E eu me vi. Também um monstro de maldade que se deixou
levar pelo ódio, pela vingança, pela dor. Quero lembrar mais, viver mais, mas a
memória agora me deixou sem um fim para minha jornada. Deixou-me sem perdão e
sem sanidade alguma.
Taciana Antunes
21/01/2014
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